Acção 11 - Corr(e)Ida

Mornas Mantenhas
"Se procurarmos a verdadeira fonte da dança e nos virarmos para a Natureza verificamos que a dança do futuro é a dança do passado, a dança da eternidade, que sempre foi e será a mesma." Isadora Duncan (1878-1927)
Ninguém pôe limites ao vento: nem
os moinhos de vento, nem Dom Quixote. Mas
um cavalo corre à desfilada por dentro do vento;
e a sua crina enfunada transforma o cavalo
num barco louco, de velas abertas como as velas
do moinho. É então
que Dom Quixote se senta na proa do barco. A sua lança
rasga os flancos do vento, e uma chuva de sangue
abre um sulco na terra por onde passaram
os ventos e os cavalos de inverno.
Nunca soube distinguir entre um barco
e um cavalo. A única diferença está nas ondas que
empurram o barco e nos quixotes que empurram
os cavalos. O espírito de vento habita-os: as ondas relincham
com uma alegria de nortada; e os quixotes cravam as esporas
nas velas do moinho pensando que são os flancos
do cavalo. É então
que o moinho se ergue com um relincho
de barco; e as suas patas cravam-se nas ondas, como se
o moinho fosse um barco equestre.
Um mar de quixotes alastra pela terra. Os cavalos
fogem à sua passagem; os ventos curvam-se perante
as suas ondas. Entrego-lhes a dulcineia branca de todos os sonhos
do vento. Os seus seios que incham com os ventos
do sul; o seu ventre por onde sopram os ventos circulares
dos trópicos. A jovem dulcineia que todos os moinhos
pussuíram com os seus braços de vento; a dulcineia enlouquecida
como as éguas batidas pelas velas dos moinhos. Os seus olhos
que empalidecem com a agonia de Dom Quixote.
O amor de quixote e dulcineia é o mar
em que esses barcos naufragam, os recifes em que as velas
do moinho se rasgam, o muro em que se precipita
uma desfilada de cavalos.
Uma bátega de pássaros
no coração da terra.
In Raptos de Nuno Júdice
Mantenhas
A mulher é mais bela do que a deusa:
a
pureza da pele, a perfeição dos braços
e dos seios, tudo o que se pode
aproximar
da ideia de arquétipo, fixou-se no seu
corpo, Por isso, os
ventos a envolvem,
arrastam-na para as nuvens,
gozam o instante que ela
lhes oferece.
O prazer, no entanto, não é eterno. Dura
o espaço do
amor. Projecta-se
na suas alegrias, desvanece-se como a luz
submersa
pela sombra do espírito. É
verdade que as nuvens têm outra significação,
quando pensamos que existe, para além delas,
o azul; e que Psique poderá
dançar
contra esse fundo de vida eterna.
Mas o que é real é o
presente: estes
ventos que trouxeram o céu de chumbo,
os dias de
inverno, e levaram consigo
a mais divina das mortais.
in Raptos de
Nuno Júdice
Mantenhas